A advogada carioca Leila Linhares Barsted é figura central no enfrentamento à violência contra as mulheres brasileiras. Integrante do Consórcio Lei Maria da Penha, foi uma das responsáveis por redigir o projeto de lei daquela que se tornaria uma das legislações mais avançadas do mundo no combate à violência doméstica. Ela recebeu, em 2023, o Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós, da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, reconhecendo quatro décadas de atuação no movimento feminista brasileiro. 

Coordenadora executiva do Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) e professora emérita da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Leila faz uma escuta atenta das novas gerações de feministas ao mesmo tempo em que assume o compromisso de “não se aposentar” de sua extensa luta. Como integrante do Comitê de Peritas do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI), da Organização dos Estados Americanos, participou em novembro da 20ª Reunião do Comitê de Peritos (CEVI), debatendo questões relevantes para a vida das mulheres. 

Nesta entrevista, Leila comenta o que foi discutido no encontro, fala sobre a importância do Consórcio Lei Maria da Penha e sobre uma trajetória comprometida com os direitos das mulheres brasileiras.

Leila, a senhora atua há décadas no enfrentamento da violência contra a mulher. O que é ser mulher num Brasil que registrou 722 feminicídios no 1º semestre de 2023, o maior número registrado desde 2019 em série histórica (dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública)? 

É ser sobrevivente. Sobrevivente de um sistema patriarcal, androcêntrico e racista, de um sistema extremamente desigual. É impossível compreender o que é ser mulher no Brasil sem levar em conta todos esses fatores e todas essas interseccionalidades. Somos sobreviventes disso, dessa estrutura que, ao longo dos séculos, tem nos mantido no lugar da subserviência e, quando nós mulheres não aceitamos esse espaço, temos sido vitimadas com formas graves de violência, no qual o feminicídio é o nível mais elevado, principalmente se nós formos pensar nas mulheres negras que, historicamente, têm sido submetidas a práticas violentas sobre os seus corpos. Essa dívida é enorme do Brasil em relação à população negra e, em especial, às mulheres negras, e se mantém até os dias de hoje. Somos sobreviventes e lutadoras.

O que esses elevados números denotam? São reflexo do machismo estrutural da nossa sociedade? 

O machismo e o racismo estrutural sempre estiveram presentes na história do Brasil, embora a violência contra as mulheres ocorra em todo o mundo, de diversas formas. O machismo aparece nos dados sobre violência, mas aparece também em dados sobre participação política das mulheres, acesso das mulheres ao mercado de trabalho e à renda. O desemprego das mulheres é muito maior do que o dos homens. Precisamos  articular o quadro de violência, que está configurado na Lei Maria da Penha ou em artigos do Código Penal, com outros dados, que não são considerados socialmente como violência, como a a extrema discriminação que as mulheres sofrem na sociedade brasileira,  a discriminação que se amplia a partir de determinantes como raça, etnia, mulheres com deficiência, mulheres indígenas e demais diversidades. O que a gente percebe é que, hoje em dia, as mulheres denunciam mais, e os meios de comunicação noticiam. Há uma visibilidade, como se no passado isso não existisse, como se isso fosse um comportamento da nossa contemporaneidade, mas não. Na nossa contemporaneidade, há uma visibilidade maior dessa violência pela atuação dos movimentos feministas e organizações de mulheres e pela  produção e divulgação de dados estatísticos. Além dos dados estatísticos há uma série de estudos que analisam os índices de violência, não só contra mulheres adultas, mas contra crianças, particularmente no que se refere ao abuso sexual e o estupro de vulnerável. Também há estudos qualitativos, uma produção acadêmica que tem se debruçado sobre o fenômeno da violência contra as mulheres, procurando perceber quais são os determinantes desta violência. Esses dados nos revelam, por um lado, um avanço no que diz ao conhecimento que as mulheres passaram a ter sobre os seus direitos e pela procura dos serviços. Por outro lado, os dados revelam que o machismo estrutural está presente nas novas gerações, o que é muito triste. O que vemos são homens jovens agredindo e assassinando mulheres jovens. Isso aponta para uma questão que a gente tem debatido muito no Consórcio Lei Maria da Penha: a ausência de políticas de prevenção. Políticas de prevenção voltadas para a mudança cultural, para padrões de civilidade. Há muito pouco investimento em prevenção. A Lei Maria da Penha talvez seja a única que prevê política de prevenção. Todas as demais leis no campo da violência ou projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional são leis punitivistas, leis para serem aplicadas após a violência. 

Podemos dizer que esses números também são um indicativo do tamanho do desafio que é tornar efetiva a Lei Maria da Penha? 

Claro que existe uma criminalidade muito grande no Brasil contra homens e mulheres e, em especial, uma criminalidade contra as mulheres. Essa criminalidade certamente está subestimada. Há um grande número de mulheres vítimas de violência que não recorrem aos serviços, às delegacias das mulheres, ficam fora do sistema de Justiça ou de Segurança. Faltam dados sobre violência contra as mulheres indígenas, rurais e encarceradas. Há um quadro incompleto. Tenta-se, a partir desse quadro, identificar determinados grupos por raça e etnia, particularmente por raça, levando em conta as questões das mulheres negras ou por faixa etária. Mas são dados frios, que não recuperam as diversas formas de violência a que as mulheres estão submetidas em uma sociedade machista e patriarcal.

Falando na Lei Maria da Penha, em 17 anos de existência, ela se tornou um dos mais importantes instrumentos de combate à violência contra a mulher no Brasil. Seus mecanismos de prevenção, porém, parecem ter recebido menos atenção do que as ações no âmbito policial e judicial para punir os crimes já consumados. Qual a sua avaliação das quase duas décadas desta importante e valiosa lei? 

Nesses 17 anos, a Lei Maria da Penha tem provocado o sistema de segurança e o sistema de Justiça e outras áreas, como saúde, educação e trabalho. Diria que ela, por meio das medidas protetivas, salvou muitas vidas. Muitas vezes, quando se fala desta lei, algumas pessoas dizem: “ah, mas a Lei Maria da Penha não diminuiu a violência”. Porém, sabemos que a diminuição da violência implica em ações que não são só legislativas. A rede de serviços e de comunicação e de políticas de prevenção deveriam ser ampliadas. A lei é bastante avançada dentro do sistema jurídico brasileiro. No entanto, percebemos que os investimentos em serviços e fortalecimento da rede de atendimento passaram, nos últimos anos,  a não ser mais vistos como uma obrigação do Estado brasileiro. O Estado promulgou a Lei Maria da Penha, se comprometeu a cumprir a Convenção para prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra as mulheres, mas o esforço para a aplicação da Lei ainda é muito frágil. 

O Estado brasileiro esteve mais presente em algum momento?

Em 2003, com a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, além da Lei Maria da Penha, foram criados protocolos, planos pró-equidade de gênero, pacto nacional de enfrentamento da violência contra as mulheres e recursos federais fortalecendo políticas estaduais. Se tudo aquilo criado nos primeiros anos da década de 2000 tivesse sido implementado, é bem possível que as mulheres estivessem melhor protegidas e talvez tivéssemos uma diminuição nos índices de violência. O que a gente vê é a política pública de violência contra as mulheres fragmentada entre municípios e estados, como se o governo federal não tivesse responsabilidade sobre uma vida sem violencia para as mulheres. Mas a violência contra as mulheres tem sido tratada puramente pela ótica criminal. É como se a Lei Maria da Penha começasse naquele artigo que trata das atividades da polícia. Mas quando a gente vai olhar os primeiros artigos da Lei Maria da Penha, ela se debruça também sobre uma série de direitos das mulheres. Os primeiros artigos da Lei Maria da Penha declaram a necessidade de um conjunto de direitos das mulheres serem efetivamente colocados em prática. Não se pode combater a criminalidade sem ver quem são essas mulheres que estão sendo agredidas. Os dados estatísticos de alguma maneira nos mostram quem são essas mulheres. É claro que existem mulheres de classe alta vítimas de feminicídio. Mas os dados revelam que a maioria das mulheres agredidas são pobres e negras, e isso aponta para a necessidade de políticas sociais mais amplas de combate ao racismo, à pobreza e à desigualdade social. Faço um paralelo com a  violência obstétrica e os dados sobre mortalidade materna. Não basta ter um sistema de saúde que funcione muito bem, é preciso que se entenda que uma parte da mortalidade materna aponta para a necessidade de as mulheres terem uma justiça reprodutiva de uma forma mais ampla além de bons serviços de saúde. Grande parte dessas mulheres que morrem de morte materna, tal como aquelas que morrem de feminicídio, estão desprovidas do exercício dos seus direitos. Não dá para gente focar simplesmente o aspecto da lei penal, o aspecto criminal. As leis também têm um caráter pedagógico, e eu acho que a Lei Maria da Penha também o tem. Praticamente todo mundo já ouviu falar da Lei Maria da Penha e sabe que a violência contra a mulher é crime. Essa eficácia de divulgação foi atingida, mas o caráter político e sociológico da Lei Maria da Penha não tem sido cumprido. Como diminuir a violência contra as mulheres, seja doméstica ou no espaço público, se na verdade o grande violador de direitos é o Estado, que não dá a essas mulheres condições de vida digna?

O Consórcio Lei Maria da Penha, do qual a senhora faz parte desde sua constituição, segue ativo e atuante. Conte um pouco sobre as ações mais relevantes que têm sido realizadas. 

O Consórcio Lei Maria da Penha foi uma articulação informal e segue assim até os dias de hoje. Não é uma organização, não é uma instituição. E isso é uma coisa bonita, porque quando nós nos juntamos para redigir as primeiras propostas do que virou a Lei Maria da Penha, éramos mulheres que estávamos na militância feminista, muitas de nós mulheres advogadas, e eu citaria, além de mim, as advogadas Ester Kosoviski, Carmen Campos, Elizabeth Garcez, Iaris Cortês, Silvia Pimental, a Defensora Pública Rosane Lavigne e a Procuradora da Justiça Ela Wiecko.  Muitas de nós éramos atuantes em ONGs, como Cepia, Cfemea, CFEMEA, Themis, Cladem, Agende e Advocacy.  Algumas já vínhamos de uma militância feminista desde a década de 1970 e já tínhamos muito claro que a violência contra as mulheres, e particulamente a violência doméstica, encontrava uma naturalização absurda na sociedade brasileira. Esse foi o motivo de nos propormos a fazer uma lei sobre violência doméstica. De 1970 até os dias de hoje, mais de 70% da violência contra as mulheres ocorre nas relações domésticas, familiares, afetivas. Era uma violência naturalizada na sociedade, a “briga de amor”, “pancada de amor”, homens absolvidos pela tese da legítima defesa da honra. Nós nos juntamos muito antes da Lei Maria da Penha. Tínhamos uma preocupação grande com a situação da violência contra as mulheres. Em 1994, o Brasil assinou a Convenção de Belém do Pará. Já existia, desde 1993, o documento da  Conferência Mundial de Direitos Humanos, onde ficou muito claro, no pronunciamento das Nações Unidas, que a violência contra as mulheres era uma violação de direitos humanos. Sabíamos, também, que algumas mudanças na legislação brasileira permitiam que uma parte grande da violência contra as mulheres fosse parar nos chamados juizados de crimes de menor potencial ofensivo. E nós dizíamos: “bom, se a violência contra as mulheres é considerada pelas Nações Unidas uma violação de direitos humanos, ela não pode parar numa vara dos crimes de menor potencial ofensivo”. Começamos aí a nossa briga, fazendo uma crítica severa à entrada da violência sob a forma de lesões corporais, cuja pena não ultrapassa dois anos, mostrando que, na realidade, essas lesões corporais não poderiam ser tratadas como crimes de menor potencial ofensivo. Levantamos todos os projetos de lei que estavam em tramitação e sentamos com a nossa experiência, com a nossa bagagem feminista, e com o previsto na Convenção, e nos propomos a fazer essa lei. Mais do que isso: nos propomos a atuar, a fazer uma incidência no parlamento, no Congresso Nacional, na Secretaria de Política para as Mulheres.

Deve ter sido muito desafiador…

Não foi uma incidência fácil, foi contínua. Nosso projeto estava pronto desde 2002, foi uma incidência política de buscar com quem nós podíamos conversar. E isso tem tudo a ver com a nossa participação no processo constituinte. Sabíamos fazer incidência política. E havia, entre nós, um investimento em leitura crítica do Direito, em especial entre as mulheres acadêmicas ou que vinham de uma trajetória de estudos críticos sobre o Direito. E a partir daí, quando conseguimos a aprovação da Lei Maria da Penha (7 de agosto de 2006), começou o trabalho de ver como a lei seria cumprida. Começou, então, um trabalho de monitoramento do processo legislativo. E, basicamente, a partir de 2015, um processo para impedir que os avanços colocados na Lei Maria da Penha fossem enfraquecidos. Há uma preocupação de tentar barrar projetos que apresentem retrocessos e ampliar a interlocução do Consórcio com outros movimentos de mulheres, negras, indígenas, com todos os grupos de mulheres e organizações feministas. O Consórcio tornou-se uma referência dentro do feminismo brasileiro em relação à violência contra as mulheres. A relação se ampliou com a participação de outras mulheres que vêm de organizações que iniciaram a proposta da Lei Maria da Penha,  como CFemea, Cepia, Themis, Cladem, núcleos de advocacy e de universidades como USP, UNB e PUC. O Consórcio também foi se fortalecendo a partir dos insumos de uma teoria crítica feminista do Direito: pensar o Direito a partir de uma visão crítica, e fica muito claro que esse direito penal que nós temos não responde às necessidades de segurança para as mulheres, no sentido amplo de segurança. 

Nesse sentido, como o Consórcio vem atuando?

O Consórcio vem, desde então, acompanhando o trabalho legislativo e atuando como um mecanismo de resistência a retrocessos e de incidência como amicus curiae em ações junto ao STF. Tivemos também um trabalho muito importante junto ao Conselho Nacional de Justiça e ao Instituto Avon para analisar as Medidas Protetivas de urgência, de que maneira a coleta de dados pelo Poder Judiciário poderia ser melhorada com a inclusão de outros dados, e não apenas o número das Medidas Protetivas, mas quem a recebeu: mulher branca, mulher negra, de onde, o perfil dessa mulher. Isso para que a gente pudesse realmente descortinar uma visão maior sobre essas medidas. O Consórcio tem feito um diálogo com a área de Justiça, tem participado de reuniões do Conselho Nacional de Justiça e com juízas e juízes do sistema de Justiça da área de violência contra as mulheres, temos produzido artigos e dialogado com os movimentos e organizações de mulheres.. 

Nos últimos anos, foram aprovados importantes legislações que visam enfretar outros tipos de violência contra as mulheres, não só aquelas do âmbito doméstico e familiar, como a senhora avalia este processo?

É um processo muito importante. A lei sobre violência política contra as mulheres, recentemente aprovada, se enquadra em parte nas recomendações do MESECVI –  mecanismo de seguimento da Convenção de Belém do Pará. Muitos países da nossa região já tinham incluído a violência política em suas lei  geral contra a violência contra as mulheres. No Brasil, a aprovação da lei de violência política foi um avanço, mas, ao mesmo tempo, ainda é muito limitada às parlamentares. Na verdade, a violência política deveria proteger também aquelas que querem entrar na política, as que são lideranças de base, de comunidades, as defensoras de direitos humanos. Isso fica claro em relação  à violência política contra mulheres rurais, que têm sido assassinadas por serem lideranças. A lei de violência política deveria ser bem mais ampla. Está se avançando, também, em leis sobre violência cibernética e digital. Várias leis têm sido publicadas, mas grande parte delas tem um caráter mais criminal. A violência política ainda encontra, de certa maneira, orientações para educação e para os partidos políticos ficarem mais atentos, e algumas modificações na lei eleitoral. Mas a maioria das outras leis se esgotam no punitivismo, pois não vêm acompanhadas de políticas de prevenção ou de atenção a mulheres que estão sofrendo esse tipo de violência. Nós não conseguimos, ainda, uma lei de violência obstétrica. Há uma rejeição muito grande por parte do Conselho Federal de Medicina, ao mesmo tempo em que crescem denúncias das mulheres,em especial das mulheres negras, que têm sido vítimas dessa violência. 

No final de novembro, a senhora participou da 20ª Reunião do Comitê de Peritos (CEVI) do Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI), na Organização dos Estados Americanos (OEA). O que foi discutido no encontro? Foram apresentadas recomendações gerais para consideração do Comitê? 

Esse encontro teve duas grandes finalidades. A primeira foi reunir as peritas dos diversos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) que participam deste comitê. Ele foi criado para ser um mecanismo interamericano de avaliação e monitoramento do cumprimento da Convenção de Belém do Pará. Ao ser criado, produziu uma metodologia de avaliação que implica um questionário com vários indicadores sobre; legislação, planos nacionais, acesso à Justiça, dados estatísticos, recursos orçamentários… Nós enviamos um questionário com todos esses indicadores, pedindo que, de quatro em quatro anos, Estados-membros nos respondam. Após receberem esses Informes o Comitê de peritas  os confrontam com relatórios alternativos das organizações não governamentais, os relatórios-sombra. São então produzidas, A partir da avaliação dos Informes e relatórios alternativos,  fazemos uma série de recomendações aos Estados, sobre leis, planos, orçamentos (os Estados nunca dizem quanto gastam, esse é um grande segredo de Estado), dados estatísticos, serviços etc. Nessa última reunião, discutimos a nossa avaliação sobre os Informes de alguns países Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Paraguai e Uruguai elaboramos recomendações. Esses documentos serão enviados tanto às Chancelarias, Ministérios de Relações Exteriores e Ministério das Mulheres  solicitando mais informações e fazendo recomendações em relação a esses cinco indicadores. Esses indicadores vão sendo ampliados. Nós queremos agora informações sobre serviços voltados à atenção de mulheres negras, indígenas, mulheres lésbicas, mulheres trans, mulheres com deficiência, saúde e direitos reprodutivos. Vamos ampliando o escopo de cada indicador e se espera que cada país tenha uma autoridade nacional competente que busque informações nos diversos setores do Estado e consiga responder aos questionários. O outro objetivo dessa XX Reunião foi debater duas recomendações novas do Comitê: uma sobre violência contra mulheres afrodescendentes e a outra sobre estereótipos de gênero. A ideia, particularmente sobre a recomendação sobre violência contra mulheres afrodescendentes, vai ser debatida com mulheres de outros países. Estamos pensando em organizar uma reunião com organizações de mulheres negras do Brasil para que elas possam se manifestar sobre essa recomendação. Após essa reunião, a CIM – Comissão Interamericana de Mulheres, o Fundo de População das Nações Unidas e uma série de outros organismos internacionais realizaram um seminário para debater uma proposta de lei modelo sobre violência digital. Foram reuniões muito intensas, com muitas novidades.

Quais são os prazos de entrega das recomendações?

Até o final de janeiro há prazo para revisão das duas recomendações, logo em seguida serão divulgadas na página do MESECVI. Foi um momento de ouvir o que está acontecendo em cada país. Não podemos ser avaliadoras do nosso próprio país, avaliamos sempre um outro país. E avaliar outro país é um aprendizado. Há países que avançaram muito, como a Colômbia, especialmente na discriminalização do aborto pela suprema corte colombiana, em políticas públicas de capacitação dos agentes públicos. Percebemos avanços nestes países, mas também há limitações que impedem que a prevenção, atenção e responsabilização da violência contra as mulheres seja uma política de Estado e não uma política fragmentada entre entes do Estado. O problema dos recursos orçamentários é sempre presente. É difícil você ter a informação de quanto o país está efetivamente investindo em capacitação de profissionais, em criação de serviços, em campanhas, ou seja, são dados pouco publicizados para o próprio Estado.

Há algum modelo ou país que trabalhe fortemente no enfrentamento da violência contra a mulher e que possa servir de inspiração para o Brasil?

Falar de um país específico seria difícil. Mas o que eu poderia dizer é que o feminismo latino-americano é reconhecido como extremamente forte, que se volta cotidianamente na luta pelos direitos das mulheres e na luta contra a violência contra as mulheres. E nós, do Brasil, estamos inseridas neste feminismo latino-americano. No feminismo latino-americano, há uma questão que nos une: a luta contra a opressão, contra a violência e pelos nossos direitos na sua amplitude. Em países ricos e bastante avançados do ponto de vista democrático, não necessariamente encontramos uma militância tão ativa, cotidianamente, na luta contra a violência. A gente tem que se orgulhar da nossa região latino-americana.

Em outubro deste ano, a senhora recebeu uma importante distinção na Câmara dos Deputados, o Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós 2023. O que essa homenagem, que também foi concedida a outras mulheres, caso da ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, representa para a senhora?

Costumo dizer que, quando a gente vai ficando mais velha, vai recebendo honrarias pelo acúmulo do trabalho realizado. É importante que as instituições do Estado e da sociedade reconheçam a luta das  mulheres. Nós sempre ficamos atrás das cortinas, fazendo o trabalho pesado, mas nunca aparecendo. São prêmios que abrem para a sociedade a voz e o rosto das mulheres que têm trabalhado. Claro que muitas outras mulheres talvez tenham trabalhado muito mais do que todas nós. Mulheres liderança das trabalhadoras domésticas, das mulheres rurais, das mulheres negras e indígenas, enfim, todas as mulheres que têm, na sua trajetória de vida, um compromisso com a democracia, com os direitos humanos das mulheres, todas deveríamos estar sendo agraciadas. Quando recebo este prêmio, sei muito bem que ele representa uma luta coletiva. Não fui eu sozinha que estava ali fazendo o milagre da multiplicação dos pães, de jeito nenhum. Trata-se de uma geração de mulheres que, como eu, tem se empenhado, há mais de quatro décadas, pelo direito das mulheres. Ao mesmo tempo em que muito me honra, espero que as minhas companheiras também se sintam honradas, se sintam recebendo, também, esse prêmio.

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